sábado, 6 de fevereiro de 2010

O despertar de um cão

Prefácio


Nunca, nunca faça mal, qualquer mal, não provoque qualquer mal-estar que seja, nenhum arranhão; nunca ouse causar uma lágrima a um filho de uma mulher que teve todas as perdas possíveis e carrega em seu peito uma dor lancinante.

Não brinque com pessoas que não tem muito mais a perder porque estas não estão mais brincando nesta vida. Nem tampouco esperam dias melhores. E muito menos caridades, pois bem sabem que não existe caridade neste mundo mais.

Se tiveres leite sobrando, dê ao filho de um faminto. Negar o que te sobra ao filho de um desesperado, pode causar um mal. Grande mal ao teu próprio filho. Muito cuidado. Mais cautela com seus risos e gozos.

Nunca brinque com quem já descobriu que a humanidade é de menor valia que um cão sarnento sem casa, sem dono e sem rumo. Pessoas são ótimas até onde lhes convém, mas ao verem um desgraçado no fundo do poço, que nada lhes tem pra dar, o que fazem é lamentar ou dizer que este tem o que merece.
Estender a mão? Só mesmo a mãe. Só uma mãe é capaz de jogar a corda para um infeliz que se encontra pendurado no visgo das paredes de um poço sem fundo.

Andam dizendo que a violência tem crescido. Mas isto é só o começo de uma era de sangue que está por vir.
Não te iludas que estás protegido, tu e os teus, no conforto de tua casa bem cercada. Não há cercas intransponíveis para quem busca alimento e dignidade para seus filhos.

O mundo que a parcela mais mesquinha e bestial da humanidade – sempre a mais besta é a poderosa - anda impondo aos miseráveis é sórdido demais para ser suportado por muito tempo; as dificuldades para qualquer passo; o acesso às necessidades humanas mais básicas; o ir e vir; o trabalho; a educação; a água; até mesmo uma latrina limpa; este mundo está com os dias contados agora. Mexeram com os filhos deles.

Faças mal a um desgraçado. Mas se fizeres a um filho dele, estarás condenado, tu mesmo, a ira de um cão que te morderá a jugular até ver todo o teu sangue escorrer entre seus dentes afiados até o bueiro que engole o lixo líquido das cidades. Cidades sujas, empilhadas de egoístas perdidos em cubículos sonhando com um lugar de verdes e azuis que jamais terão.

Tu, seja lá quem fores, não reconhecerá o cão com olhos suplicantes que teu desprezo feriu muito profundamente.
Todo cão ferido e humilhado um dia desperta mostrando que um cachorrinho amável e manipulável ainda conserva seu instinto de lobo e que seus dentes servem pra coisa mais nobre que rasgar alimento. Trata-se de defesa. Estamos falando da própria vida e sua continuidade.

Somos, sim, mamíferos selvagens quando se trata de sobrevivência. Mais selvagens ainda quando se trata de nossa prole inocente.
Bem, quem se acovarda diante da sua própria prole, nem digno da mordida de um cão é. Este é o próprio lixo desprezível e apodrecerá junto com o esgoto que corre pelas valetas das periferias destas cidades imundas.

Andam subjugando e subestimando o povo que anda quieto.
Esquecem que cães ficam silenciosos mirando sua presa antes de saírem em arrancada certeira ao seu alvo com suas mandíbulas poderosas...

Pobre é aquele a quem o cão mira, o sem vida, sem iniciativa, o covarde sem ódio e sem amor. Estes pobres imbecis que vivem uma vida medíocre e triste pensando o tempo todo em si mesmos e em no que hão de comprar nos shoppings. Tristeza que tentam dissipar nos churrascos de fins de semana com uma família de mentira, vazia, que ri. Todos eles riem. Mas risos injustos sempre trazem lágrimas ácidas que marcam faces como mordidas.

E o cão mira silencioso como os lobos.





Tempo de silêncio, tempo de atenção. Muita atenção.

A hora dos acertos sempre chega. Se tiveres armas, prepara-te, se não as tem, fuja. Mas corra muito mais que um cão enraivecido ou estarás morto.

Ai de quem não viveu um pouco mais profundamente e desconhece dor. Dor. A dor que dá poderes supranaturais. Estes acham que seu riso bobo e sua suposta bondade conterão o cão ferido. Quanta ingenuidade!

Tarde, meu caro.

A loba furiosa está mirando teu pescoço de hiena velha.
E sem nenhum dó.
Não. Ela não tem piedade. Porque não tiveram piedade da sua cria.