sexta-feira, 10 de julho de 2009

Hoje, porque ontem não deu

Enquanto vocês oravam…

Pensei neste título para o meu blog ontem. Aliás, ontem é que eu estava com vontade de escrever. Não hoje. Só que preciso escrever hoje. Então vou me esforçar bastante agora, embora esteja indisposta e triste. Mas alguma indignação e revolta ajudam bastante.

Acho que minha vida sempre foi intensa demais. Acumulei vivências fora da curva e observações que, aos poucos e, com alguma organização, devo converter em palavras inteligíveis - aviso que meu vocabulário é pobre e vulgar.

Mas pra que escrever? Nem sei. Este será só mais um blog no meio de centenas de milhares mais interessantes, de gente que domina gramática, literatura, ciências políticas, atualidades e seja mais o que for. Eu não domino nada. Nem mesmo as minhas emoções, creio.

Vamos lá!
“Enquanto vocês oravam” é impertinente, não?
Meio agressivo talvez. Herege!!! Não sei.
De qualquer forma, enquanto uns oram, outros vivem horrores. Isso me faz pensar que, se existe um deus, ele faz assepsia. Escolhe uns pra proteger, outros despreza e tantos muitos “Ele” atira a uma vida miserável desde que nascem.
Mundo non sense.

Vou contar uma historinha que mais ou menos justifica o título desta página.
Esta historinha se repete todos os dias neste mundo de grandes mentiras, aparências e gente fraca e covarde.
Se você não gosta de “baixo astral”, de coisas horrendas, feche esta janela e vá procurar um site leve, ou papear no “emiéssiene”.

“A ‘Ave Maria’ tocava no rádio Semp sobre uma prateleira presa na parede, perto de uma janela enfeitada por uma cortina de renda branca. Já era seis da tarde. Hora de tomar sopa, comer o pão caseiro fresco.
A menina arregalava os olhos. Não gostava quando o portão rangia anunciando que o homem estava chegando. Medo. Sentia muito medo.

Logo tinha que ir dormir, a menina. E logo vinha o homem deitar no mesmo quarto. Ele não era seu pai. Seu pai estava no céu, como a mãe dizia. Não eram seus irmãos. Eles quase nunca estavam. Era o homem que casou com a mãe.

Enquanto a avó e a mãe assistiam a novelas, o homem ia descansar do dia de trabalho na fábrica. Deitava na cama de casal e a menina fingia dormir na cama perpendicular coberta de lençóis brancos. Ele tirava as roupas. Ela ouvia, apavorada, o barulho do cinto sendo aberto. Mantinha seus olhos bem fechados, mas o cara sabia que ela não estava dormindo. Ele começava a rir baixinho, levantava e ia até a beirada da cama da menina
."
O resto eu não vou contar porque é muito pesado pra uma página pública – quem quiser mais detalhes da historinha, me peça por e-mail. Mas, vocês devem saber a continuação, né?

Depois das novelas a avó orava na cozinha. Todas as noites.
A menina imaginava que sua avó era uma santa e que o deus com quem ela conversava tão longamente não gostava dela.
O deus que criou tudo; que era muito sagrado; que só olhava pras pessoas puras; que castigava severamente quem fazia coisa feia; que era o detentor de toda a beleza; que dava um tal de reino pra quem “Ele” amava; que mandava tempestades quando estava enfurecido por causa das coisas feias que as pessoas faziam; que era dono de todas as estrelas, do sol, das flores e bichinhos; Ah! Esse deus via tudo e sabia que a menina fazia coisa muito feia. O deus não a amava. Ela era... nada. E nada podia falar porque o padrastro não ia achar bom. Ele dizia que ela era feia e suja e a mãe não devia saber disso. A mãe, igualmente, era uma santa.
A menina tinha 7 ou 8 anos. Não me lembro. Tem coisas que chocam profundamente e a gente apaga os detalhes da memória.
O fato é que menina sempre se sentiria... nada. Indigna. Suja. Feia. Culpada. Menos que todos. Com vontade de jamais ter existido. Carregaria isto pro resto da sua vida.


Que coisa, não? A gente vê famílias tão lindas com pai, mãe, filhos e cachorrinho perfumado e adornado de fitinhas e lacinhos, todos juntos na sala de televisão enquanto outros filhos de outros pais que não tem sala de televisão e cachorros magros e sarnentos na porta da casa esperando um resto de comida, morrem de fome, de doenças facilmente curáveis, de violência, de abandono.
As famílias lindas, protegidas por aquele deus asséptico, agradecem pelo que têm, enquanto os desgraçados suplicam por trabalho, por alimento, pela misericórdia do deus que, dizem, ser onipotente, onipresente e onisciente.

A vida pode ser um pesadelo pra maioria das pessoas. Agora, o que é mais revoltante é ver “santos” negarem a realidade.
Envoltos em suas auras limpas, observando e lamentando o mundo do alto de púlpitos, preferem entoar hinos pobres e idiotas; orar pra um fantasma ausente que satisfaz suas necessidades psicológicas “santíssimas” e livrarem, com estes versos espirituais, sua consciência de qualquer obrigação com o mundo real.

O mundo real, meus caros, é muito, muito triste. Selvagem. Pode até ser belo em alguns momentos. Mas nestes momentos, há que se estar desprendido do resto do mundo.

Fico pensando em coisas tão pequenas que podemos fazer pra alegrar pessoas e, lamentavelmente, ficamos escondidos na bolha que criamos pra nós mesmos. Este, sim, é um mundo imaginário. O mundo egoísta é um mundo imaginário e pessoal.

Muitas vezes, uma palavra boa da gente, um aperto de mão, um sorriso, um abraço, pode ser um grande alento e incentivo a uma pessoa que sofre sabe lá o que. Ninguém sofre porque quer.

Vou dizer uma coisa: eu abracei a menina feia e suja esses dias. Entendi suas dores, seu destino e disse que ela não tinha culpa pelas suas decisões meio erradas e seu jeito derrotista.
Acho que eu a ajudei a enxergar seu próprio valor, acreditar que ela pode tudo, apesar do mundo, Mostrei que não é uma bela família que constrói uma pessoa forte e de alto valor e, sim, o contato com o mundo como ele é: bárbaro.
Guerreiros jamais se formarão em um ambiente certinho e tranqüilo, mas no meio de dificuldades e dores. Assim é que se formam os “espíritos” de mais valor, mais sábios.
Disse à menina que ela é mais limpa e muito mais sábia que os medíocres que passam pela vida sem nada a acrescentar pra ninguém; esses protegidos do deus dos santos.

Me virei pro mundo e gritei: enquanto vocês oravam, inocentes choravam.
Enquanto vocês oravam, muito poucos lutavam por um mundo justo
Enquanto vocês oravam, crianças eram estupradas
Enquanto vocês oravam, balas atravessavam vísceras
Enquanto vocês oravam, muita gente chorava... e nunca vocês quiseram saber o porquê.
Por quê? É bem mais fácil não saber.

3 comentários:

  1. Jane, este texto é, para mim, motivo de comoção e revolta. Comoção por avivar minha mente para essa realidade brutal que é a da maior parte da humanidade e me provocar uma ternura ilimitada por toda essa gente, uma vontade e uma decisão de, como você e não como as freirinhas assépticas, colocar a mão dentro do esgoto e lá pescar, não para comer, mas para libertar, essa gente linda que você descreve. Revolta contra aqueles todos que colocam como máxima áurea de suas vidas não fazer o bem, ser bom e erradicar o mal, mas sempre levar lucro e vantagem e nunca ter prejuízo, de qualquer espécie que seja. Às vezes até promovem o bem, desde que isto lhes conceda vantagens, mas nunca se for motivo de alguma perda. É este paradigma egoísta que precisa ser trocado para que o mundo se torne um lugar verdadeiramente aprazível, justo, harmônico e fraterno para "todos". Veja a postagem que coloquei sobre minha mãe em meu blog:
    http://wolfedler.blogspot.com/2009/07/dona-lygia-minha-mae.html .
    Para mim, você é uma reedição moça daquela mulher que eu admirei mais que a nenhuma outra e que me passou os valores que cultivo, apesar não ter atingido o "insight" da inexistência de Deus, como o Philip da "Servidão Humana" de Sommerset Maugham. Inclusive porque minha mãe era vidrada em ciências, especialmente química e trabalhara em uma pesquisa do irmão dela, médico do Exército, sobre o tratamento da tuberculose, no hospital de tuberculosos de Itatiaia, no estado do Rio.
    Você está de parabéns por ter aberto este blog, e pela acertada escolha do seu título. O mundo precisa de gente como você, Jane, a quem eu devoto uma admiração e uma afeição muito grandes. E a quem eu desejo as maiores venturas e realizações naquilo em que se empenha. Não gosto de dizer que lhe desejo o maior "sucesso", porque esta palavra está impregnada de uma conotação frívola, mundana e materialista (não no sentido metafísico, mas no existencial). Conte comigo para caminhar a seu lado neste projeto.
    Gostaria que você conhecesse o movimento "Zeitgeist" e veja como há muita coincidência com nossos pontos de vista nele:
    http://www.youtube.com/watch?v=W9Rs-CJObw0 .
    É longo, mas vale a pena.
    Abraços, caríssima.

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  2. Perfeito Jane! Você tinha que postar este texto no blog da UNA (União Nacional de Ateus).

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  3. Cara Jane,

    A cada dia surpreende-me conhecê-la um pouco mais. Tua porção escritora deixou-me emocionado, tanto pela forma, como principalmente pelo conteúdo, rude e infelizmente atual, sem perder o lirismo e a objetividade.

    Permita-me perguntar: Como não amá-la?

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